Com orientação, incentivo e liberdade na dose certa, os pais podem ajudar as crianças e os adolescentes a lidar bem com a tecnologia

Em 1966, aos 11 anos, o jovem Bill Gates começou a dar trabalho a seus pais. Ao contrário de seus colegas, para quem os computadores eram instrumentos quase desconhecidos, ele demonstrava um interesse incomum por software. Preocupados, seus pais o levaram a um terapeuta. Ele aconselhou o casal a dar liberdade ao filho e a incentivar seu dom. A decisão levou o garoto a se tornar uma figura fundamental na história da tecnologia e um dos homens mais ricos do mundo. “Com a liberdade, ele foi capaz de desenvolver aquele que se tornaria seu interesse de toda a vida”, disse o pai, Bill Gates Sr.
Da mesma forma que os bons pais do passado incentivavam seus filhos a
criar o hábito da leitura para prepará-los para a vida, os bons pais de
hoje têm de criar filhos que naveguem com maestria pelo universo
digital.
Mais de 50 anos depois da primeira sessão de terapia de Bill Gates, o dilema de sua família deixou de ser uma exceção. A tecnologia tornou-se um elemento cotidiano da infância. Da mesma forma que os bons pais do passado incentivavam seus filhos a criar o hábito da leitura para prepará-los para a vida, os bons pais de hoje têm de criar filhos que naveguem com maestria pelo universo digital. A tarefa é delicada. É necessário lidar com obstáculos desconhecidos para os pais das gerações anteriores, como o bullying virtual ou criminosos que usam a tecnologia para se aproximar de vítimas. É difícil não ficar chocado com exemplos como a canadense Amanda Todd, de 15 anos. Ela se enforcou em outubro do ano passado, depois de passar três anos sendo perseguida na internet por um estranho que a convenceu a tirar fotos íntimas.
Diante de notícias como essa, muitos pais se veem no mesmo dilema vivido pelo pai de Bill Gates. Dar liberdade total às crianças e aos adolescentes na internet pode ajudá-los a lidar melhor com a tecnologia, mas também os põe em perigo. Controlar e reprimir o interesse dos filhos pelo universo digital pode prejudicar muito seu futuro num mundo em que a tecnologia é tão importante – e ainda há o risco de podar, no berço, um futuro talento para a computação.
Desde o nascimento de seu primeiro filho, a pesquisadora americana Lynn Schofield Clark, doutora em novas mídias pela Universidade de Denver, se dedica a estudar a melhor maneira de orientar o uso da tecnologia na infância. Em 2009, quando seus filhos Jonathan (hoje com 11 anos) e Allison (9) já tinham idade suficiente para se interessar por computadores, ela criou um blog em que reunia estudos e dicas sobre a melhor maneira de apresentar a tecnologia a uma criança e de controlar o uso da internet e celulares. Os textos, reunidos no blog durante quatro anos, resultaram no livro The parent app (O aplicativo dos pais). Lynn afirma que a liberdade total que o jovem Gates teve para usar computadores não é mais viável. Mas deve ser substituída por uma vida digital compartilhada por toda a família. Segundo ela, pais e filhos devem ter frequentes conversas sobre tecnologia, incluindo temas polêmicos, como sites violentos ou pornográficos. “Não se trata de largar uma criança por horas e horas na frente de um computador, fazendo o que bem entende, mas de incentivá-la da maneira correta e de mostrar o que aquilo pode ter de útil”, diz Lynn.

Em sua pesquisa, Lynn entrevistou 134 famílias para entender o relacionamento de pais e filhos com a tecnologia. No lado dos pais, observou se eles criavam limites para os filhos e se conversavam com as crianças sobre o conteúdo acessado. No lado dos filhos, estudou a reação aos estímulos tecnológicos e ao tipo de educação dada pelos pais. Depois de analisar os resultados, concluiu que as famílias se dividiam em quatro tipos possíveis em relação ao uso da tecnologia: restritiva, compartilhada, ativa e de aprendizagem participativa.
Na família restritiva, os pais decidem o que pode ser acessado, o tempo de uso dos equipamentos e os jogos adequados. Na compartilhada, os pais usam a internet e jogam com os filhos, mas não conversam sobre o conteúdo. Na ativa, há conversa e orientação, mas os pais não se envolvem nas atividades dos filhos. Alertam sobre os perigos de um game violento, mas não se interessam em jogar games considerados adequados. Na família de aprendizagem participativa, pai e mãe usam jogos, internet e aplicativos como uma maneira de ensinar e aprender com os filhos. São os pais que usam a internet para ajudar o filho a fazer pesquisas ou que sentam ao lado da criança enquanto ela está no computador para aprender um novo jogo. Para Lynn, a aprendizagem participativa é o modelo ideal para a família na era digital. “Esse tipo de mediação é o único que proporciona uma troca real de informações entre pais e filhos.” Nas famílias que interagem dessa maneira, as crianças e os adolescentes aprendem mais com a tecnologia.
A psicopedagoga Patrícia Costa, de 41 anos, e o administrador Luis Cláudio da Silva Costa, de 44, usaram esse tipo de interação para educar o filho Rafael, de 14 anos. A paixão dele por tecnologia começou cedo. “Desde os 6 anos, eu desmontava aparelhos para ver como funcionavam por dentro”, diz. Seus pais nunca impuseram regras rígidas, mas fizeram questão de entender o universo em que ele estava entrando. Patrícia, que não usava nem e-mail, começou a pesquisar sobre aplicativos para poder conversar com o filho e orientá-lo. “Senti que apenas vigiar e proibir não seria suficiente”, diz. Aos 12 anos, Rafael programou sozinho seu primeiro aplicativo para iPhone. O hobby adolescente virou um emprego precoce. Hoje, ele divide seu tempo entre o colégio e o trabalho de desenvolver programas. Também dá palestras sobre tecnologia para pessoas com a idade de sua mãe.
Decisões como a de Patrícia dividem a opinião de pesquisadores. Não há dúvida de que o diálogo e a orientação são fundamentais na relação entre pais, filhos e o mundo digital. Mas muitos não recomendariam dar tanta liberdade a uma criança de 6 anos. O pesquisador David Dutwin, da Universidade da Pensilvânia, autor do livro Unplug your kids (Desconecte seus filhos), afirma que a liberdade deve ser dada gradualmente, a partir do momento em que os filhos chegam à pré-adolescência. Crianças de até 9 anos, diz ele, precisam de um controle maior. Até essa idade, as regras e os limites sobre o acesso à internet e aos jogos devem ser rigorosos. À medida que a idade aumenta, a liberdade e a confiança devem ser maiores, e as conversas sobre o assunto, mais explicativas. “É preciso conversar, sem meias palavras, sobre os perigos da internet e dos jogos”, afirma Dutwin. “Um pré-adolescente tem maturidade suficiente para entender.”

Ficar atento ao grau de interesse que a criança ou o adolescente demonstra é importante para garantir que o uso da tecnologia seja estimulante. Se a habilidade com computadores for acima da média, os pais devem ser ainda mais cautelosos para não frustrar o filho ou impedir que seu talento se desenvolva. Jovens com alto desempenho apresentam algumas características em comum: são extremamente concentrados, conseguem aprender sozinhos, têm boa memória e costumam desprezar aquilo que não lhes desperta interesse. “A preocupação nesses casos é que, se não houver limite, o adolescente pode ficar bitolado, passar o dia na frente do computador e não desenvolver outras habilidades fundamentais”, afirma a psicóloga Cristina Colavite, especialista no atendimento a jovens com altas habilidades. “É preciso estimular a vida social e o interesse por outros assuntos, mas sem deixar de incentivar essa habilidade específica, que pode render belos frutos profissionais e pessoais.”
Ficar muito tempo diante do computador nem sempre significa descuidar da vida social. “Foi por meio dos games que conheci pessoas de outros países e aprendi a falar inglês”, afirma Anderson Ferminiano, de 18 anos. Incentivado por amigos virtuais, em pouco tempo começou a criar games e, aos 14, avisou a mãe de que queria fazer um estágio numa empresa de programação. “Fiquei assustada no começo, mas não podia dizer não”, afirma a professora Mirian Ferminiano, de 46 anos, mãe de Anderson. “Ele dava conta de todas as tarefas e tinha um interesse sério por programação.” O estágio foi só o começo. Com a ajuda de Marcelo Ballona, fundador do site Submarino, Anderson e um sócio criaram uma rádio on-line. Seu próximo passo é embarcar para os Estados Unidos, para estudar numa faculdade de negócios. “Pode ser que eu tenha perdido outras coisas enquanto passava tanto tempo na frente do computador, mas acho que valeu a pena”, diz Anderson.
Casos como o de Anderson mostram que, antes de criar qualquer regra para o acesso à internet, os pais devem se preocupar em entender se o que o filho faz durante tanto tempo diante do computador é algo produtivo. “Para minha sorte, meus pais me deram muita liberdade. Podia passar quanto tempo quisesse no computador, desde que não deixasse de lado minhas outras obrigações”, afirma a empresária Bel Pesce, de 25 anos. “Às vezes, os pais deixam de perceber um talento maravilhoso por ter regras preestabelecidas. É um desperdício.” Formada no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), uma das melhores universidades do mundo, Bel trabalhou no Google e na Microsoft antes de criar sua empresa. Em 2012, se tornou um guru para jovens ao lançar o livro A menina do vale, um guia para empreendedores digitais. Seu último projeto é uma escola que oferece cursos sobre habilidade interpessoal e empreendedorismo.

Para o fundador da Atari, Nolan Bushnell, o primeiro homem a apostar no talento de Steve Jobs e a contratá-lo, os games podem ser uma boa maneira de introduzir a tecnologia na vida de crianças muito novas. Nas escolas, diz ele, as máquinas são capazes de tornar o aprendizado mais rápido, fácil e interessante. “Os games ensinam mais que qualquer outra mídia já inventada”, diz Bushnell. “Isso é totalmente contrário ao sistema passivo adotado nas salas de aula tradicionais, onde os alunos perdem o interesse facilmente e produzem menos.” Um estudo feito com 1.000 crianças pela Escola de Medicina de Harvard mostrou que, quando acessados com moderação, os games servem como incentivo à competição saudável e estimulam a criatividade. “Nos games educativos, as informações ficam dinâmicas e interativas, e o processo de ensinar e aprender se torna mais próximo da realidade”, afirma Regina de Assis, especialista em mídia e educação pela Universidade Harvard. Os resultados mostram que, com orientação, incentivo e liberdade na medida certa, os games e a internet podem ajudar na formação de qualquer criança. Se além de tudo isso ela tiver muito talento e sorte, pode até se tornar o próximo Bill Gates.
Fonte: Revista Epoca
Nenhum comentário:
Postar um comentário